amores expresos, blog da CECÍLIA

Tuesday, May 1, 2007

Estrangeiro

Folha de S. Paulo CECILIA GIANNETTI Quem imigra tem os olhos aplicados, à procura de sinais de sua identidade respingados em letreiros de mercearias "NOW THAT I am categorized / Officer, get me naturalized" - Gogol Bordello, "Immigrant Punk" 

Há duas maneiras de se viver no estrangeiro. Uma delas é deixando de ser estrangeiro. Guardar as raízes numa caixa dentro do closet, para serem retiradas novamente apenas como fotografias quando surgir a pergunta "De onde você é?" - constantemente ouvida e repassada entre pessoas de tantos lugares distantes, em cidades de imigrantes como Nova York, Londres ou Berlim. Há quem mostre apenas o adesivo colado do lado de fora da caixa: "origens", escondendo o conteúdo como se fossem as economias que resguarda das taxas de um banco. Assim protegida, sua história pertence mais ao presente que ao passado. Não é muito acessada, enquanto o estrangeiro se mistura à cor e hábitos locais. Outros levantarão a tampa da caixa de vez em quando, para exibir rapidamente o que comiam na infância de quintal, o que ouviam no rádio, como eram as pessoas e de que maneira se comportavam numa fila de banco, ou no supermercado do seu lugar de origem; se havia shopping lá, se havia bombas, guerra civil, desemprego, casamentos de velhos com crianças e ditaduras militares. Ou se tudo era "normal", o tipo de normalidade dos países mais ricos. Outra maneira de se viver em uma terra que não é a sua é entrando na caixa da identidade nacional alheia. Protegido por suas paredes, usa-se a caixa como bote salva-vidas, flutuando cautelosamente pela cultura e pelo dia-a-dia do novo país. Nesse caso, o estrangeiro raramente cruza as fronteiras da Chinatown de NY, onde vive e trabalha entre a sua própria gente, trocando meia dúzia de expressões em inglês por dia, geralmente com fregueses: "Five "dólá'", ""Haf" a nice day". Poucas palavras, mas a cisão está lá. Em Tower Hamlets, o imigrante execra o jubileu da rainha. No caso dos turcos na Alemanha, às vezes é preciso que enxerguem semelhanças com a paisagem de Istambul até mesmo no comércio em torno do metrô de Kotbusser Tor. No Rio de Janeiro, um imigrante irlandês abre um pub em Ipanema, cercando-se de outros irlandeses que apenas passam pela cidade quente. De todo modo, quem imigra tem os olhos sempre aplicados, despertos, à procura de sinais de sua identidade respingados em letreiros de mercearias, embalagens de produtos importados, na língua original ouvida ao acaso no metrô, falada entre turistas; a camisa de um time de futebol pelo qual torce à distância, avistada enquanto sobe a Quinta Avenida. Os olhos procuram fantasmas, reconhecimentos. E os encontram em qualquer vizinhança. Em Notting Hill, uma caribenha vê um ex-namorado atravessando a rua; amigos deixados para trás esperam em esquinas improváveis. Liberdade, em São Paulo, aguarda visitas que talvez venham para ficar. Os fantasmas do imigrante estão todos vivos - e, tirando a saudade, passam bem. Pelo menos é o que contam nas cartas.