amores expresos, blog da CECÍLIA

Sunday, May 6, 2007

Noite

Estou dividindo meu "estudo da noite" por posts. No anterior eu conto por que, mesmo velha e cansada das casas de luz vermelha (boates, toda boate tem luz vermelha, you perv), eu freqüento várias aqui. Neste, começo a contar sobre as casas. Olha como eu sou organizada.

Antes de descobrir o Cafe Fatal, encontrei o Berghain. Ou melhor, um armazém vazio. Numa noite de sábado desemboquei em Warschauer pela primeira vez, andando sozinha a procura do clube, sobre o qual um guia turístico me diz apenas que tem festas "desinibidas". Um amigo brasileiro ordena que eu entre lá no sábado e saia somente na segunda-feira, pois as festas tendem a durar 48h.

Às oito da noite filmei um pouco a fachada, enquanto ainda estava claro, e fui jantar no restaurante do Ufuk ali perto (e foi quando o turco me garantiu que sopa de tomate com uísque me manteria bem disposta não só para dançar a noite inteira como também para viver 100 anos, se eu tomasse as duas coisas juntas todos os dias). Quando voltei lá, por volta de meia-noite, encontrei o armazém ainda às moscas. Luzes apagadas, nem um cachorro de punk sequer revirando lixo em parte alguma. Algumas garrafas quebradas e cacos de vidro espalhados sobre o chão de terra indicam que um dia, ali, houve festa. Mas hoje, nada da famosa fila debaixo da friaca, purgatório gelado dos clubbers que, dizem, podem passar mais de uma hora ali e, ao chegarem à entrada, serem barrados por "roupa ou postura inadequada". Quando li sobre a política exclusiva do Berghain, tive certeza de que seria mandada de volta para casa assim que o segurança batesse o olho no meu jeans-e-tênis, e que eu cumpriria a tortuosa caminhada até o metrô junto com outros rejeitados da noite berlinense, tremendo de frio e vergonha. Risos.

Na moita

Não foi naquela noite que verifiquei se essa nóia tinha fundamento. Como estava tudo vazio, andei até a estação de metrô de Warschauer. Lá ouvi um tunti-tunti familiar, que não vinha do U-Bahn passando sobre os trilhos. Cravado na estação, sem neon nem filas quilométricas, fica o clube Matrix. Pensei estar entrando nele quando passei por uma porta do tipo que se espera encontrar num frogorífico, depois de o segurança me garantir que lá dentro estava "very good". Numa cidade em que os maiores clubes são notórios por barrar todas as noites algumas dezenas de pobres coitados à porta, qualquer sinal de simpatia num segurança deve levantar suspeita. Mas confiei no cara. Ora, debaixo do metrô, tocando música eletrônica em volume ensurdecedor e chamado Matrix, pensei, isso aqui há de ser o suprassumo da modernidade.

Eu tinha entrado na Haus B., ou "Büsche", como me informava uma faixona lá dentro. Olhando no dicionário Alemão-Português para viajantes aflitos, descobrimos que "büsche" quer dizer arbusto, moita, mato. Esse dicionário é bom mesmo, pois naquela noite a Büsche estava lotada de alemoas que elegeriam sua Miss Haus B.

Como as maiores casas noturnas que vi aqui, a Haus B também é labiríntica, com corredores que parecem te levar a outras festas e portas que pensamos tratar-se do toiletten mas são, na verdade, outro ambiente que não é exatamente banheiro mas serve para se fazer umas intimidades.

Clubber berlinense: origem

Berlinense é como gremlin: é jogar neles água que passarinho não bebe e soltar num lugar meio escuro que ficam loucos. As pacatas figuras que passam as tardes de verão sentadinhas nos cafés da Oranienstrasse ou da Schönhauser Alle, desaparecem em autocombustão causada por fogo no rabo. De suas cinzas nascem os clubbers.

Então acontece que nessa noite em que baixei na Büsche o pessoal estava muito animado com o evento da Miss. O DJ intercalava hits do passado pouco remoto, como George Michael, "Freedom", com a inevitável "Promiscuous girl" da Nelly Furtado, mais Beyonce, Justin Timberlake e Gwen Stefany. Na pista sacudiam-se gerações, tipos, cabelos, raças, estilos absolutamente diferentes de mulheres, que só tinham uma coisa em comum: die büsche.

Em meio à androginia galopante - lugar comum em Berlim; aliás, foi primeira cidade do mundo a abrigar uma organização para homossexuais, em 1987 -, moicanos e senhoras de terninho com cara de quem trabalha no Serviço de Orientação Educacional de algum colégio, chamou a minha atenção a morena de véu. O cabelo preso para o alto sob o pano, "penteado" comum entre as muçulmanas que vejo no meu bairro em Berlim todos os dias. O rosto confirmava traços que identifico nas ruas mais turcas de Kreuzberg, emoldurados sempre pelos panos de cores sóbrias que embrulham na cabeça.

Deve ser muito difícil ser quem ela é. Imagino que não seja abertamente gay como as amigas com quem está rindo e cantando na Haus B, mas o fato de sair à noite já deve ter gerado uma guerra particular bem séria em sua casa. Por muito menos já morreram algumas mulheres muçulmanas em Berlim, em "assassinatos por honra". Não tenho certeza de que ela é muçulmana. Por outro lado tudo nela diz que é.


Era proibido fotografar e filmar lá dentro, mas encontrei algumas imagens do evento no site da boate

Não entendi o que estavam anunciando do microfone na cabine do DJ para todos os cantos da casa, mas logo um enxame de mulheres se acotovelava em torno da pista, formando a passarela para as concorrentes desfilarem. Oito participantes tentariam conquistar a platéia e o juri (foto acima), cada qual com seu estilo bastante distinto, todas na extremidade dos 100 graus da Escala Kinsey.

Entra uma gordinha de óculos de aro fino, cabelos bem curtos em corte assimétrico; entra uma loira estilo sueca-sem-sutiã; entra alguém mal-parado no meio de um processo de mudança de sexo, que não sobreviverá até a final. Os juízes serão cruéis: androginia sim, indecisão não.



O público aplaude todas com o mesmo entusiasmo. As participantes se esforçam. Não é apenas um walk-in. A coisa toda vai durar cerca de uma hora, com direito a mudança de trajes e show de talentos. Entrarão ainda, uma a uma, exibindo-se em pijamas e camisolas (escolhas feitas a partir do perfil butch/femme de cada uma). A sueca-sem-sutiã, por exemplo, virá de baby-doll; a menina do corte de cabelo curtíssimo assimétrico surgirá num camisolão de homem estilo século XVIII, com toca.

Entre as performances de destaque, uma lapdance em que alguém da platéia é convocada a se sentar numa cadeira no centro da passarela para receber as reboladas da concorrente.

A gordinha de óculos leva o título. Ou não entendi nada: todas recebem a faixa vermelha e flores.